O conceito de autoatendimento e self-service tem revolucionado a forma como nos relacionamos com os serviços de consumo e trabalho. De shoppings a bancos, e até supermercados, essa tendência transferiu responsabilidades que antes eram dos empregados diretamente para os consumidores. O autoatendimento bancário e os caixas automáticos nos supermercados são apenas alguns exemplos dessa mudança, que impacta não só a experiência do cliente, mas também as relações de trabalho tradicionais. Neste artigo, o autor explora como essas transformações estão moldando nosso cotidiano, questionando até que ponto essa conveniência realmente beneficia o consumidor ou favorece interesses corporativos. Confira!
Como o Autoatendimento e Self-Service estão transformando o Trabalho e o Consumo
É oficial. Estamos todos trabalhando para os nossos fornecedores. O conceito de autoatendimento e serviços self-service está cada vez mais presente em nossas vidas.
Tudo começou com a expansão dos shopping centers no Brasil, trazendo consigo a cultura dos fast foods americanos. Nestes estabelecimentos, você faz sua refeição e, ao terminar, limpa sua própria bandeja e a deposita em uma lixeira, permitindo que outra pessoa possa usar a mesa rapidamente.
Nos anos 80, isso era visto como uma prática charmosa e civilizada, algo que muitos jovens que não levantavam seus pratos em suas casas acabaram adotando em público. Era quase um ritual de boas maneiras. As exceções a essa regra eram resolvidas por equipes de limpeza dos shoppings, pois o conceito ainda estava sendo tropicalizado para o Brasil, ou seja, adaptado às nossas realidades culturais.
Com o tempo, essa prática foi tão bem assimilada que hoje parece mal-educado deixar sua bandeja na mesa ao sair da praça de alimentação de um shopping. Por meio dessa nova cultura, os clientes começaram a assumir responsabilidades que antes eram exclusivas dos funcionários dos seus fornecedores.

A transição para o autoatendimento não ficou restrita ao setor de alimentação. Os bancos, por exemplo, começaram a oferecer caixas eletrônicos no final dos anos 80, com a promessa de menos filas e mais conveniência. Inicialmente, poucas pessoas arriscavam utilizar essas máquinas, mas, à medida que a tecnologia foi evoluindo e o consumidor foi se adaptando, o número de caixas humanos foi diminuindo, forçando os consumidores a utilizar o autoatendimento a um nível tal que hoje permite que muitos bancos operem sem qualquer agência física.
Como resultado dessa mudança, tornou-se comum que você precise de um smartphone com capacidade de armazenamento suficiente para suportar o aplicativo do banco. Esses aplicativos geralmente estão entre os mais pesados no seu celular, ocupando espaço significativo. Talvez você não tenha percebido, mas, para utilizar esses serviços, foi necessário decorar várias senhas e aprender a operar o aplicativo com eficiência. Além disso, você forneceu informações pessoais sensíveis, como sua impressão digital e foto. O sistema te instrui de maneira direta: “tire uma selfie”, “aproxime o rosto”, “tire os óculos” – comandos emitidos por uma inteligência artificial, no modo verbal imperativo, que seria impensável para um consumidor dos anos 80 aceitar de um funcionário de banco.

Mas é lógico que tudo vem acompanhado do discurso de que “é para sua segurança ou para não aumentar o custo final”. E com isso, as instituições bancárias economizam em aluguéis de imóveis, impostos e, claro, nos encargos trabalhistas.
Abram-se parênteses para destacar que os bancos, cuja principal função e razão de existir é garantir a segurança das operações com o dinheiro de seus clientes, têm delegado abertamente a esses próprios clientes grande parte dessa responsabilidade. Basta que se registre que quando ocorrem acessos indevidos às contas, a situação é frequentemente tratada como resultado de um suposto compartilhamento de senha por parte do cliente, atribuindo a ele os prejuízos decorrentes dessas fraudes.
Nos supermercados, outra grande transformação é evidente. Antigamente, você era atendido por um funcionário que somava o preço dos produtos numa calculadora. Posteriormente, passaram a adotar um scanner que lê o código de barras e soma os valores e processa o pagamento – uma alteração que não interferiu substancialmente no consumidor. Hoje, muitos supermercados têm caixas de autoatendimento, onde o cliente realiza todas essas etapas sozinho. O sistema monitora sua compra com precisão, incluindo o peso dos produtos, e qualquer erro gera inconsistências que obrigam o cliente a repetir o processo. Câmeras de segurança garantem que tudo seja feito corretamente, e você segue exatamente fluxo esperado pelo estabelecimento.

Nos fast foods e padarias, o conceito de autoatendimento também se consolidou. Você mesmo se serve, seja pegando o pão na padaria ou servindo-se de refrigerantes e condimentos em redes de fast food. Essa prática, antes reservada apenas a funcionários paramentados de toucas e luvas, agora é responsabilidade do cliente. Se cair um cabelo de alguém na cesta de pães ou se alguém tocar os pães com a mão, paciência. Na prática, ninguém mais observa as normas de higiene, que foram deixadas em segundo plano.
Observe-se que esses tipos de cenário não configuram uma relação de emprego formal, conforme o art. 3º da CLT, mas é difícil não ver alguma proximidade com a definição legal de empregado. Comparado com o procedimento anterior ao autoatendimento, há uma espécie de prestação de serviços do cliente ao fornecedor, ainda que parcial. A dependência do consumidor se torna clara quando não há alternativas para a satisfação de uma necessidade (como quando há uma padaria única no bairro); ou quando todos os fornecedores operam mais ou menos do mesmo modo (como os bancos). A eventual frequência do cliente poderia ser interpretada como uma continuidade. E, claro, tudo isso é justificado como uma forma de evitar o aumento de custos para o consumidor final – que no caso, seria a remuneração.
Por outro lado, um dos elementos que marcam a figura do empregador é a direção da prestação de serviços. Nos caixas automáticos dos supermercados, o consumidor segue procedimento estrito estabelecido pelo seu fornecedor de alimentos, sempre sob vigilância. Nos bancos, você recebe as ordens da máquina para autenticação e outros serviços. Numa análise mais criteriosa, é possível perceber os flertes que o autoatendimento faz com a relação de trabalho formal cujo prestador de serviços seria o consumidor.
O que é mais curioso é que o consumidor, visto por muitos como o “soberano” no sistema capitalista, tem assumido passivamente essas novas responsabilidades sem questionamento. Normas de higiene, questões de privacidade e até a transferência de atividades que antes eram de responsabilidade de empregados para os clientes são temas que merecem uma reflexão mais profunda.
No setor público, a tendência também está se espalhando. Órgãos como a Receita Federal e os Tribunais de Justiça não necessitam mais de tantos funcionários. A tecnologia permitiu a automação de serviços, exigindo que advogados, contadores e outros profissionais se adaptem e aprendam a manusear sistemas digitais de média e alta complexidade para alimentar os sistemas desses órgãos, que tramitam, calculam e intimam sem a intervenção de funcionários públicos. A dificuldade de adaptação com essas tecnologias fez com que muitos profissionais mais experientes da contabilidade e da advocacia se afastassem de suas atividades, aposentando-se precocemente.
Portanto, o autoatendimento e a automação de serviços têm proporcionado maior conveniência e redução significativa de custos operacionais para as empresas. No entanto, esse progresso vem com um preço que merece uma discussão aprofundada: a transferência de responsabilidades para o consumidor. Essa mudança impacta diretamente as relações de consumo e, inevitavelmente, contribui para o aumento do desemprego em diversos setores.
É essencial que o mercado consumidor reflita sobre essas transformações e questione até que ponto esse processo de automação realmente oferece uma autonomia positiva para os interesses dos clientes, ou se, na verdade, trata-se de uma imposição das empresas e fornecedores. Será que essa prática é aceitável? Ela realmente beneficia a todos? Ou apenas favorece determinados interesses? Essas são questões que devem ser analisadas cuidadosamente pelo consumidor moderno.